O Jornal da Ciência traduz a reportagem de Shellen Wu para a série de ensaios que marcam o aniversário da revista Nature, sobre as maneiras pelas quais os últimos 150 anos moldaram o sistema de pesquisa atual
A cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de 2008 em Pequim contou com as quatro grandes invenções da China antiga: a bússola, a imprensa, o papel e a pólvora. A lição exibida, ensinada nas salas de aula de todo o país que hoje publica a maioria dos trabalhos de pesquisa, é que a inovação chinesa em ciência e tecnologia mudou o mundo.
No entanto, menos de cem anos antes, o filósofo chinês Feng Youlan escreveu o provocador ensaio “Why China Has No Science” (Por que a China não tem ciência”, 1922). O estudioso – da Universidade de Columbia, em Nova York – argumentou que, desde a antiguidade, as tradições filosóficas do país e a compreensão única da relação humana com a natureza impediram que o espírito da investigação científica se enraizasse. Feng, como muitos outros na época desde então, lançou o alerta de que a ciência seria única salvação para uma nação em franco declínio.
Colocar os esforços para mudar a observada de falta de ciência no contexto da turbulenta história moderna da China é fundamental para entender como a nação chegou ao seu atual estado de superpotência. O fio vermelho que atravessa os últimos 150 anos da China é sua crença inabalável na ciência como o caminho para a riqueza e o poder. A relação emaranhada entre pesquisa e nacionalismo na China obscureceu como essa crença cresceu a partir de uma combinação de influência estrangeira e adaptação chinesa. Particularmente nas décadas de 1960 e 1970, o governo chinês tentou se concentrar na ciência caseira e teve sucesso em áreas como agricultura e medicina. Mas, a longo prazo, os períodos de maior avanço foram aqueles em que a China se abriu para influências externas.
É uma lição salutar à medida que nos preparamos para os desafios dos próximos 150 anos, incluindo mudanças climáticas, esgotamento de recursos e exploração espacial. Isso exige um amplo envolvimento com o mundo.
Assolada por desastres
As catástrofes criaram as condições para o desenvolvimento da ciência e da tecnologia na China. A última era imperial, a dinastia Qing (1644–1912), enfrentou uma série de derrotas humilhantes diante das potências estrangeiras no século XIX, começando com a Primeira Guerra do Ópio em 1839. Essas e a subsequente crise do ópio levaram a uma das maiores revoltas de todos os tempos. A Rebelião de Taiping (1850 a 1864) destruiu a região mais rica do meio do país e resultou em mais de 50 milhões de mortes.
Em 1868, um ano antes da fundação da Nature, o primeiro livro de ciências ocidentais foi publicado em chinês, Introdução à Filosofia Natural (Gewu Rumen). Destina-se a estudantes do Colégio dos Intérpretes, uma escola aberta por reformistas que procuraram adaptar o império para um mundo em mudança, ensinando aos oficiais aspirantes idiomas e conhecimentos estrangeiros do Ocidente. O americano que traduziu o livro, William Martin, não possuía formação científica, mas compreendeu sua importância para melhorar a sorte de um país assolado por desastres. O livro continha ilustrações de microscópios e trens e explicações básicas de uma variedade idiossincrática de conceitos em química, eletricidade e física.
Martin e outros missionários protestantes que se dirigiram para a China no século XIX viram o país como a próxima fronteira na salvação espiritual. A introdução da ciência através do livro de Martin e outras obras traduzidas forneceram uma abertura e uma maneira de melhorar o bem-estar material da vasta população de um país empobrecido. O povo chinês que trabalhou nas traduções estava menos interessado na salvação espiritual, mas reconheceu a importância da ciência como base do crescente poder militar e econômico do Ocidente. Eles viram sua falta como a razão do estado de atraso da China.
Em 1863, os matemáticos Xu Shou e Hua Hengfang construíram o primeiro navio a vapor da China, usando ilustrações de uma revista missionária como guia. Eles então ajudaram a estabelecer um departamento de tradução que introduziu numerosos trabalhos científicos na China. No final do século XIX, muito mais chineses estavam convencidos de que o que tornava o Ocidente rico e poderoso era a ciência e a tecnologia. Milhares de estudantes se aventuraram no exterior para estudar, muitos no Japão. Vendo a ciência como o caminho para aliviar os problemas de seu país, eles voltaram para casa ansiosos para estabelecer seus campos.
Enquanto a dinastia entrava em colapso em câmera lenta, missionários e outros representantes de potências estrangeiras se tornavam cada vez mais assertivos no interior. No verão quente e seco de 1900, tensões ferventes explodiram em campo aberto. Os rebeldes, mirando sua ira nos estrangeiros, sitiaram os bairros diplomáticos de Pequim. Na primeira sensação internacional de notícias do novo século, tropas de oito países, incluindo Grã-Bretanha, Estados Unidos e Japão, resgataram os diplomatas presos.
No frenesi de destruição e pilhagem que se seguiu, soldados franceses e alemães reivindicaram o observatório nos arredores da cidade antiga que continha instrumentos astronômicos feitos para a corte por padres jesuítas nos séculos XVII e XVIII. Os alemães levaram para casa um conjunto de astrolábios e sextantes, elaboradamente decorados com dragões e outros motivos reais. (Eles foram exibidos nos terrenos de um palácio em Potsdam, nos arredores de Berlim, até 1919, quando o Tratado de Versalhes estipulou seu retorno). Pior ainda, os oito países invasores impuseram pagamentos de indenização consideráveis. Eles faliram o estado Qing e apressaram seu fim.
Com parte de seus despojos, os americanos estabeleceram um fundo de bolsas – dinheiro que uma geração dos melhores estudantes chineses usou para estudar nos Estados Unidos. Em janeiro de 1914, um grupo deles estabeleceu a Sociedade de Ciências da China na Universidade Cornell em Ithaca, Nova York.
Construção da nação
Foi assim que a organização principal da ciência chinesa na primeira metade do século XX chegou ao exterior. Os fundadores e estudantes subsequentes retornaram na maioria à China e se tornaram líderes de suas áreas, numa época em que a instabilidade política e a falta de financiamento centralizado tornavam a pesquisa uma tarefa hercúlea. Treinados em disciplinas que muitos consideravam essenciais para a construção de um país moderno, começaram a trabalhar em ciências agrícolas, genética, biologia, química e muito mais.
Por exemplo, um grupo de geólogos treinados quase todos no exterior persistentemente pediu ao governo que patrocinasse uma pesquisa nacional de recursos. Um deles, Ding Wenjiang, que co-fundou o China Geological Survey em Pequim, em 1915, tornou-se um intelectual público de destaque, participando de debates amplamente divulgados e exigindo um aumento do financiamento estatal para as ciências. Sua incansável promoção ajudou a geologia a se tornar a ciência chinesa mais coesa e respeitada internacionalmente na primeira metade do século XX.
Enquanto isso, Xu Chongqing e Li Fangbai, dois físicos chineses educados no Japão, introduziram a teoria da relatividade de Einstein. Pesquisadores do programa de bolsas Rockefeller, Li Ruqi e Tan Jiazhen retornaram dos Estados Unidos para chefiar os principais departamentos de biologia e genética. Os biólogos Hu Xiansu e Bing Zhi defenderam o estudo taxonômico da flora e fauna chinesas. Nas décadas que se seguiram, esses cientistas começaram a ficar preocupados por terem sua agenda de pesquisa baseada em modelos estrangeiros, e buscaram, ao invés disso, construir uma ciência especificamente chinesa.
Nessa época, a frase ‘salvar a China através da ciência’ (‘kexue jiuguo’) aparecia com frequência nos escritos populares. A pobreza e a turbulência política assombraram os estudantes estrangeiros. Aprendendo fisiologia e genética de plantas em Cornell, Jin Shanbao recebeu comida estragada em uma brincadeira de estudantes americanos, que o provocaram dizendo que era para seus compatriotas famintos. Profundamente chateado e ansioso para aliviar o sofrimento da China, Jin voltou para casa antes de terminar sua graduação. Ele passou a desenvolver variedades de trigo de alto rendimento, escrevendo “comida é a primeira necessidade das pessoas, a agricultura é a base do país”.
A crença de que a ciência salvaria a nação atingiu seu auge durante a invasão japonesa, a partir de 1937. Diante de forças vastamente superiores, o governo nacionalista se retirou para o oeste, na província montanhosa de Sichuan. Muitos cientistas seguiram de bom grado. Os geólogos, por exemplo, continuaram seu trabalho em uma fazenda nos arredores da capital na guerra, Chongqing.
Fotos tiradas pelo biólogo britânico Joseph Needham em 1943 capturam as escassas instalações e o espírito de patriotismo entre os cientistas que ele encontrou. Extasiado, ele começou a estudar a história da ciência na China. (Needham publicou uma série monumental de livros chamada “Ciência e Civilização na China”, que ajudou a popularizar a ideia das quatro grandes invenções antigas dentro do país e também em todo o mundo).
Em suma, a ânsia de resolver problemas nacionais através da ciência prevaleceu ainda antes de 1949, quando a ideologia marxista priorizou a aplicada sobre a teórica. Ao longo do século XX, os maiores desafios do país foram alimentar e melhorar o padrão de vida de uma população vasta e crescente. Independente das afiliações políticas, a maioria dos principais cientistas chineses de cada época se dedicou a enfrentar esses desafios.
Ciência para todos
Este ano – 2019 – é um ano de aniversários. O movimento do quarto de maio de 1919, uma resposta à traição dos aliados da China em Versalhes, definiu uma geração de intelectuais chineses. Os protestos estudantis na Praça da Paz Celestial, em 1989, se basearam nessa tradição e se tornaram um ponto de virada na era de ‘Reforma e Abertura’ da China. Este mês marca o septuagésimo aniversário da fundação da República Popular.
Nos relatos hagiográficos de uma época repleta de horrores, 1949 foi o começo de uma “Nova” China. Tais histórias enganosas encobrem a continuidade da ciência através da mudança de regime. Quando os comunistas esmagaram os nacionalistas na guerra civil que se seguiu à derrota do Japão em 1945, a maioria dos cientistas ficou para ajudar na reconstrução. O novo regime continuou os esforços para desenvolver a ciência que havia começado na era anterior.
Embora a classificação dos pesquisadores chineses continuasse basicamente a mesma, na primeira década do regime comunista, a retórica mudou drasticamente. A ciência agora era definida explicitamente como um esforço de e para o povo. Einstein e a relatividade foram divulgados, pesquisas e campanhas de saúde em massa chegaram (ainda mais). No auge da cooperação sino-soviética na década de 1950, 10 mil consultores soviéticos trabalharam em toda a China para fornecer ajuda técnica e científica ao desenvolvimento industrial do país.
O Partido Comunista supervisionou uma reestruturação completa das universidades e instituições de pesquisa do país para remover a influência dos EUA e da Europa e moldá-las de acordo com as da União Soviética. A Academia Sinica, principal instituição de pesquisa da China, criada pelo governo republicano em 1928, foi reorganizada tornando-se a Academia Chinesa de Ciências (CAS). Os especialistas soviéticos ajudaram a definir a primeira agenda de cinco anos da CAS para focar na extração de recursos e outras aplicações práticas.
De fato, essa agenda não difere radicalmente do foco da pesquisa em tempos de guerra de muitos cientistas chineses. Em nem tampouco a comunidade científica chinesa rendeu-se inteiramente à influência soviética. Por exemplo, a pseudo-genética do lysenkoismo, tão desastrosa para a agricultura em outros lugares, nunca se tornou a posição oficial devido à forte resistência de proeminentes biólogos chineses, apesar da intensa pressão política.
As restrições materiais na condução da ciência em um país pobre moldaram essa geração de pesquisadores chineses. Aqueles que continuaram a fazer progressos significativos, minimizaram a importância de seus treinamentos e conhecimentos ocidentais, enfatizando a empatia pelas massas. Depois de receber seu doutorado na Universidade de Minnesota, em Minneapolis, em 1949, o entomologista Pu Zhelong retornou à China continental e defendeu o uso de insetos aos pesticidas químicos caros (que se mostraram a rota mais ambientalmente sustentável). Na década de 1970, o cientista agrícola Yuan Longping e outros criaram o arroz híbrido, levando à própria revolução verde da China. Dizem que Yuan aprendeu com suas interações com os agricultores nos campos.
A era maoísta também diversificou a força de trabalho científica. Mulheres, camponeses e jovens foram incentivados a desafiar a hierarquia social em suas aldeias e locais de trabalho e exaltados por suas contribuições à ciência. Para as mulheres, em particular, as décadas de 1950 e 1960 abriram dramaticamente horizontes e permitiram que participassem da ciência em um grau sem precedentes. Tu Youyou, por exemplo, que ganhou o Prêmio Nobel de Medicina, fez a maior parte de sua pesquisa sobre as qualidades antimaláricas da artemisinina durante esses anos. (A transformação foi temporária. Nas últimas quatro décadas, os preconceitos de gênero voltaram junto com as reformas de mercado).
Mas os cientistas que desejavam um estado robusto e o apoio à pesquisa rapidamente se decepcionaram. A Revolução Cultural, iniciada em 1966, fechou a CAS e todas as universidades. A educação no exterior tornou-se um fardo, e os mesmos pesquisadores que permaneceram na China sem patriotismo nas décadas anteriores se viram alvos de ataques contra o elitismo. Credenciais revolucionárias eram vistas como mais importantes que o conhecimento especializado. A engenharia de barragens e outros projetos de larga escala para construir o socialismo, superando a natureza, às vezes se realizavam a despeito dos conselhos de especialistas.
Projetos importantes para a defesa nacional, incluindo pesquisa nuclear, foguetes e satélites, chamado programa ‘Duas bombas e um satélite’, continuaram recebendo muito apoio do Estado e foram protegidos contra a intervenção política. Liderada por cientistas chineses, a maioria treinada na Europa e nos Estados Unidos, a China se tornou uma potência nuclear em 1964 e teve seu primeiro lançamento bem-sucedido de satélite em 1970.
Cinquenta anos atrás, as perspectivas para a ciência na China eram geralmente mais sombrias. Muitos campos pararam quando a própria estrutura institucional que apoiava o avanço da ciência foi fechada durante a década da Revolução Cultural. Os anciãos da ciência passaram anos trabalhando em fazendas remotas e em campos de reforma. Nos diários pessoais do vice-presidente da CAS, Zhu Kezhen, meteorologista treinado na Universidade de Harvard, em Cambridge, Massachusetts, trechos de dias nos anos 1960 mostravam pouco além de “varrições”. Muitos ficaram muito piores, alguns até morreram. Mas a ideia de que ciência e tecnologia formaram a base da sociedade moderna nunca desapareceu completamente.
Quando os Estados Unidos e a China restabeleceram as relações em 1972, os cientistas americanos se apressaram em visitar. A maioria não percebeu a extensão da repressão política que seus colegas haviam enfrentado e ficou entusiasmada com a perspectiva de explorar a ciência socialista. Eles notaram o estado estagnado da pesquisa teórica; campos como a física de partículas estavam décadas atrás do Ocidente.
Os visitantes ficaram impressionados com alguns avanços, dadas às circunstâncias difíceis. Além de sua revolução verde, o país havia feito um progresso significativo na saúde pública: campanhas em massa ajudaram a acabar com a esquistossomose, uma doença infecciosa que matava cerca de 400 mil pessoas por ano. Muitos dos cientistas envolvidos passaram anos em locais remotos de trabalho de campo sem ver suas famílias.
Após a morte do presidente Mao, em 1976, a ênfase na ciência e na tecnologia foi recuperada. Em 1978, Deng Xiaoping lançou formalmente uma política conhecida como ‘Quatro Modernizações’, que colocou um foco renovado na agricultura, indústria, defesa nacional e ciência e tecnologia. Naquele momento, as universidades e a CAS haviam sido reabertas e suas lideranças estavam ansiosas para botar a mão na massa.
Nas décadas seguintes, a economia chinesa passou a se parecer com a de um país capitalista. Mas a abordagem top-down forjada nos anos de Mao ainda é clara. Criou uma infraestrutura educacional e institucional centralizada para a ciência, o que facilitou o direcionamento rápido de investimentos estratégicos. A indústria de robótica, por exemplo, um dos principais componentes do plano da China para entrar em manufatura de alta tecnologia até 2025, está sediada no nordeste do país devido à proximidade com o centro de pesquisa de robótica da CAS, em Shenyang. Outras áreas de força, como ciência e engenharia de materiais, também se basearam nos interesses da era anterior em superar a escassez de recursos e os desafios ambientais.
Durante esse período de reforma e abertura, os cientistas que haviam estudado no exterior nas décadas de 1930 e 1940 e sobreviveram à turbulência das décadas anteriores descobriram que suas redes internacionais tinham valor novamente. Uma segunda onda de estudantes chineses embarcou para estudos no exterior – 5,86 milhões entre 1978 e 2018. Grandes investimentos do governo nos últimos anos atraíram esses talentos de volta.
Aberta a ideias
Ao longo do último século e meio, a crença de que a ciência e a tecnologia podem melhorar o país tornou-se profundamente enraizada na cultura chinesa, visível em slogans pintados nas paredes e cartazes das cidades ao campo. Não reconhecido nessas exibições é a conexão entre ciência e uma abertura a influências e ideias do exterior.
Passear por Pequim hoje é ver vestígios da história da ciência em todos os lugares. No lado leste, no segundo anel viário, estão os instrumentos astronômicos jesuítas, que percorreram as marés geopolíticas turbulentas do século XX. Do outro lado da cidade, em um canto tranquilo do zoológico de Pequim, uma pequena placa indica o local onde, nos últimos dias da dinastia Qing, em 1906, o Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio abriu a primeira estação de experimentos agrícolas em 70 hectares de terra.
No canto noroeste da cidade, o Colégio dos Intérpretes se tornou a prestigiosa Universidade de Pequim; mais adiante, outra faculdade com laços históricos com os Estados Unidos é a Universidade de Tsinghua, a principal escola de ciência e tecnologia da China. Cartazes e exibições públicas celebram o desenvolvimento científico. Nas livrarias, a ficção científica é o gênero mais procurado. Em laboratórios bem financiados e estações de campo de última geração, a China está avançando com uma firme convicção em seu status de superpotência científica.
Há outra história nesse caminho, a dos compromissos com o mundo exterior que transformou o país. Nos altos e baixos dessa história há uma mensagem – o futuro exige o internacionalismo que impulsionou a ascensão da China nos últimos 150 anos.
Nature 574, 25-28 (2019) – Tradução: Jornal da Ciência